O QUE MOTIVA OS
ATAQUES DOS BOLSONARISTAS AO CHAMADO "MARXISMO CULTURAL"
Marco Aurélio Nogueira. REVISTA ÉPOCA (25/01/2019)
Não é só o governo
Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala. Há no país uma
onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da
ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela
se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.
A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de
posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se
libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do
politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de
causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir
os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a
respeito.
A mixórdia
temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado
pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na
gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias
de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece
acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento
gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de
“destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições
mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas
Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.
Ora o discurso é
genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a
pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a
esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um
conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem
preocupação de fomentar algum debate.
Não há qualquer
intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros,
acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em
suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para
desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política
nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus,
religião e Bíblia.
O ataque ao
marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que
distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o
socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o
compromisso de “desconstruir” Gramsci.
Nessa operação, o
nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da
opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para
ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da
grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de
Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras,
tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias
malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que
assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras
linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual
deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.
A denúncia do
“marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o
marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido
dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo —
autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda
porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de
dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação
intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do
Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo”
para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política,
abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da
luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e
sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e
analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo
originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção
para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.
Quanto mais o
capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.
Depois de Gramsci,
o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não
tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou,
tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo
intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso
tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.
Tudo isso não se
deveu exclusivamente a Gramsci, até mesmo porque sua obra, escrita quase toda
nos cárceres fascistas, só chegou ao conhecimento público após a Segunda Guerra
Mundial e se converteu lentamente na potência que é hoje.
Tanto quanto o
pensador italiano, contribuíram para a revitalização e a disseminação do
marxismo teóricos como György Lukács, Karl Korsch, Adam Schaff, Henri Lefebvre
e Lucien Goldmann, dentre muitos outros, cada um tomando caminhos particulares,
fazendo inflexões “heterodoxas” e questionamentos à doutrina original, que, com
o tempo, convergiram para um mesmo estuário. O marxismo se tornou muitos,
diversificou-se, ganhou musculatura e novas linguagens, compondo aquilo que a
dialética chama de unidade na diversidade.
O fato é que não
houve pensador importante, nos últimos 100 anos, que não tenha dialogado com as
ideias de Marx e as variadas versões do marxismo. Não existiria o Jürgen
Habermas da ação comunicativa, o Zygmunt Bauman da modernidade líquida ou o
Ulrich Beck da sociedade de risco sem leituras marxistas. Norberto Bobbio
sempre o teve como um dos grandes, dedicando um livro inteiro a ele (Nem com
Marx, nem contra Marx, Editora Unesp). Antes deles, não foram poucos os que
reconheceram, como Max Weber, a relevância das ideias de Marx.
Em seus escritos,
muito mais que em sua militância política, Marx foi um portento, que não só
descortinou a estrutura do capitalismo, como compreendeu o vigor da economia na
modelagem da vida social moderna, na qual o dinheiro e o consumo jogam papel
preponderante, como objetivos em si. Dedicou-se, assim como os que souberam se
aproveitar de suas ideias, sendo ou não marxistas, a buscar formas de superar
ou ao menos regular o irracionalismo dos mercados sem controle e sem limites.
Legou ao futuro uma perspectiva racional, generosa, uma homenagem ao progresso.
O debate sério
sempre criticou a vulgarização das ideias de Marx, sua conversão em catecismo,
sua simplificação em fórmulas desconectadas da realidade, sua dificuldade de
elaborar uma teoria do Estado e da política. Parte disso se deveu aos partidos
comunistas, que, na luta política, viram-se forçados a “massificar” a teoria
que os inspirava. Responsabilidade ainda maior coube à força centralizadora do
socialismo soviético, que impôs uma leitura oficialista do marxismo que
aprisionou os comunistas durante décadas.
Paradoxalmente, a
cruzada antimarxista de hoje emprega os mesmos expedientes das vertentes mais
pesadas do stalinismo. Mente, deforma, difama, acusa sem critério, procura
punir e estigmatizar, valendo-se da simplificação grosseira e da pressão dos
aparatos estatais. O stalinismo fazia isso em nome de uma revolução
igualitarista, o que atenuava de certo modo o sacrifício que pedia. O
antimarxismo atual, ao contrário, apregoa uma guinada conservadora que dê um
passo atrás. Mas também ele só se viabiliza se fizer dos canais oferecidos pelo
Estado uma plataforma para difundir uma cópia invertida daquilo que acusa em
seus adversários. É inócuo nos territórios livres da sociedade civil, onde o
debate pode fluir de forma democrática.
É o que faz o
antimarxismo atacar sem trégua as diferentes instâncias da sociedade civil, da
imprensa às ONGs, das escolas à indústria cultural, dos partidos políticos aos
sindicatos. Ele precisa deslegitimar aquilo que foge de seu controle,
reforçando ao contrário os “centros dirigentes”, a palavra dos chefes, os manuais
repletos de novas verdades. Cria seus mitos e seus arautos, seus filósofos,
suas narrativas, suas ideias-força, que espalha pelas redes que manipula.
Constrói assim um repertório simbólico e expressivo, com o qual combate a luta
cultural. Denuncia toda e qualquer operação ideológica, mas é ele próprio uma
ideologia.
O ataque ao
“marxismo cultural” dirige-se à mobilização do eleitorado de Bolsonaro, mas também
almeja espetar na agenda pública algumas estacas que delimitem um campo
ideológico. Deseja demarcar um terreno de luta, separar os bons dos maus,
transferir culpas e responsabilidades. Nunca antes, no Brasil, a direita
conservadora chegou tão longe.
Não se trata de um
ataque inócuo. Ele tem implicações sérias. Uma delas é o risco de
“macarthismo”, de discriminação e caça aos “vermelhos”. Não há uma diretriz
clara, mas Onyx Lorenzoni já falou em “despetizar” o Estado. Sem freios
moderadores, a cruzada poderá incentivar muita gente a denunciar comunistas em
cada curva do caminho, como se fossem “inimigos da pátria”.
Afinal, o combate
ao “marxismo cultural” vale-se de pessoas que pensam estar na esquerda a razão
maior de suas agruras. Sem conseguir ver o conjunto da vida, estão predispostas
a ser contagiadas pelo maniqueísmo simplista do “nós contra eles”.
O desdobramento
disso será o empobrecimento da democracia e o prolongamento da crise do sistema
político. Capturado pela insanidade por ele mesmo criada, o governo poderá cair
na tentação de moldar suas políticas por critérios sempre mais ideológicos e sempre
menos técnicos.
Na hipótese de
essa parábola se completar, perderemos todos.
MARCO
AURÉLIO NOGUEIRA é professor de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e
Análises Internacionais da Unesp. Atuou como revisor técnico da tradução
brasileira do Dicionário Gramsciano (Boitempo, 2017)
https://epoca.globo.com/o-que-motiva-os-ataques-dos-bolsonaristas-ao-chamado-marxismo-cultural-23376168