terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Anti-globalismo e “marxismo cultural” são teorias da conspiração nos EUA

Por Claudia Trevisan (Estadão, 30/01/2019)
Alex Jones ficou rico disseminando teorias da conspiração nos EUA. A mais cruel delas sustenta que o ataque a tiros no qual 20 crianças de 6 e 7 anos foram mortas na escola primária Sandy Hook, em 2012, não existiu. Jones também disse que o atentado de 11 de setembro de 2001, no qual quase 3.000 pessoas morreram, foi idealizado por integrantes do governo George W. Bush. Os seguidores de seu programa de rádio ouviram ainda que o Pentágono colocou produtos químicos na água para transformar americanos em gays e que desastres naturais são provocados por “máquinas do tempo” controladas pelos militares.
Jones é um dos principais propagadores das “ideias” do anti-globalismo e do suposto “marxismo cultural”, que por décadas navegaram no subterrâneo da ultradireita americana. Com a chegada de Donald Trump ao poder, essas teorias conspiratórias saíram das sombras e ganharam um aliado na Casa Branca. Por influência do ideólogo Olavo de Carvalho, elas se disseminaram entre seguidores de Jair Bolsonaro e aterrissaram no Itamaraty com o chanceler Ernesto Araújo.
Antes de a atual onda nacionalista ganhar força na Europa, o ataque ao “marxismo cultural” ocupou grande parte do manifesto divulgado pelo extremista de direita norueguês Anders Behring Breivik horas antes de ele matar 69 pessoas a tiros, no dia 22 de julho de 2011. O título do texto era “2083: Uma Declaração de Independência Europeia”.
Essas teorias conspiratórias sustentam que há uma ofensiva “globalista” para destruir a cultura ocidental cristã e patriarcal. Seus alvos são diversos e incluem o multiculturalismo, a diversidade, o feminismo, o politicamente correto, gays, liberação sexual, globalização e imigrantes. Nos EUA, elas são associadas à ansiedade do homem branco diante do avanço de negros, minorias e mulheres na sociedade. Também são denunciadas como anti-semitas por entidades que acompanham o movimento de grupos de ódio, como o Southern Poverty Law Center e a Anti-Defamation League (ADL). “A origem do termo [“marxismo cultural”] é uma referência ao povo judeu, que é visto como tendo lealdade não a seus países de origem, como os Estados Unidos, mas a alguma conspiração global”, disse o diretor da ADL, Jonathan Greenblatt, ao New York Times.
Os que atacam o suposto “marxismo cultural” apontam sua origem na Escola de Frankfurt, formada por intelectuais alemães que se refugiaram nos EUA durante o nazismo, entre os quais Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Esses teóricos mesclaram Karl Marx, Sigmund Freud e Max Weber em sua tentativa de entender mecanismos de dominação social e defender o pensamento crítico.
A associação da Escola de Frankfurt a uma suposta conspiração judaico-marxista para destruir a civilização ocidental frequenta as fileiras da extrema direita americana há décadas. Antes de Jones, ela foi propagada nos anos 90 por discípulos de Lyndon LaRouche, outro americano célebre por disseminar teorias conspiratórias. No fim dos anos 80, ele foi preso por fraudes financeiras que provocaram prejuízo de US$ 30 milhões. Depois que policiais cercaram sua casa na Virgínia, LaRouche afirmou que a acusação era fruto de um pacto entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev.
O bilionário e filantrópico húngaro-americano George Soros é visto pela ultradireita dos EUA como uma espécie de herdeiro intelectual da Escola de Frankfurt. A ironia é que ele teve um papel relevante no fim do regime comunista em seu país de origem, no qual sua família sobreviveu ao nazismo adotando uma falsa identidade e trocando seu sobrenome de Schwartz para Soros. Um dos homens mais ricos do mundo, o investidor destinou US$ 32 bilhões de sua fortuna à ONG Open Society Foundations, uma rede com presença em uma centena de países dedicada à defesa da democracia liberal –o que inclui Estado de Direito, democracia representativa, direitos humanos, combate à corrupção, livre acesso à informação e apoio à sociedade civil. Mas talvez o que mais provoque urticária na extrema direita é seu apoio a grupos marginalizados e sua crença no internacionalismo e na cooperação entre nações como melhores antídotos contra o autoritarismo.
O mais surpreendente é como o anti-globalismo e o combate ao suposto “marxismo cultural” encontraram eco no Brasil, um país emergente multiétnico ao qual interessa o multilateralismo. Em seu discurso de posse, o chanceler Araújo declarou que a política externa “estava presa fora do Brasil” e se propôs a libertá-la. Mas sua pregação anti-globalista está muito distante de ser uma criação nacional ou original.
https://internacional.estadao.com.br/blogs/claudia-trevisan/anti-globalismo-e-marxismo-cultural-sao-teorias-da-conspiracao-nos-eua/

sábado, 26 de janeiro de 2019


O QUE MOTIVA OS ATAQUES DOS BOLSONARISTAS AO CHAMADO "MARXISMO CULTURAL"

Marco Aurélio Nogueira. REVISTA ÉPOCA (25/01/2019)
Não é só o governo Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala. Há no país uma onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.
A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a respeito.
A mixórdia temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de “destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.
Ora o discurso é genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem preocupação de fomentar algum debate.
Não há qualquer intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros, acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus, religião e Bíblia.
O ataque ao marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o compromisso de “desconstruir” Gramsci.
Nessa operação, o nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras, tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.
A denúncia do “marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo — autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo” para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política, abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.
Quanto mais o capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.
Depois de Gramsci, o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou, tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.
Tudo isso não se deveu exclusivamente a Gramsci, até mesmo porque sua obra, escrita quase toda nos cárceres fascistas, só chegou ao conhecimento público após a Segunda Guerra Mundial e se converteu lentamente na potência que é hoje.
Tanto quanto o pensador italiano, contribuíram para a revitalização e a disseminação do marxismo teóricos como György Lukács, Karl Korsch, Adam Schaff, Henri Lefebvre e Lucien Goldmann, dentre muitos outros, cada um tomando caminhos particulares, fazendo inflexões “heterodoxas” e questionamentos à doutrina original, que, com o tempo, convergiram para um mesmo estuário. O marxismo se tornou muitos, diversificou-se, ganhou musculatura e novas linguagens, compondo aquilo que a dialética chama de unidade na diversidade.
O fato é que não houve pensador importante, nos últimos 100 anos, que não tenha dialogado com as ideias de Marx e as variadas versões do marxismo. Não existiria o Jürgen Habermas da ação comunicativa, o Zygmunt Bauman da modernidade líquida ou o Ulrich Beck da sociedade de risco sem leituras marxistas. Norberto Bobbio sempre o teve como um dos grandes, dedicando um livro inteiro a ele (Nem com Marx, nem contra Marx, Editora Unesp). Antes deles, não foram poucos os que reconheceram, como Max Weber, a relevância das ideias de Marx.
Em seus escritos, muito mais que em sua militância política, Marx foi um portento, que não só descortinou a estrutura do capitalismo, como compreendeu o vigor da economia na modelagem da vida social moderna, na qual o dinheiro e o consumo jogam papel preponderante, como objetivos em si. Dedicou-se, assim como os que souberam se aproveitar de suas ideias, sendo ou não marxistas, a buscar formas de superar ou ao menos regular o irracionalismo dos mercados sem controle e sem limites. Legou ao futuro uma perspectiva racional, generosa, uma homenagem ao progresso.
O debate sério sempre criticou a vulgarização das ideias de Marx, sua conversão em catecismo, sua simplificação em fórmulas desconectadas da realidade, sua dificuldade de elaborar uma teoria do Estado e da política. Parte disso se deveu aos partidos comunistas, que, na luta política, viram-se forçados a “massificar” a teoria que os inspirava. Responsabilidade ainda maior coube à força centralizadora do socialismo soviético, que impôs uma leitura oficialista do marxismo que aprisionou os comunistas durante décadas.
Paradoxalmente, a cruzada antimarxista de hoje emprega os mesmos expedientes das vertentes mais pesadas do stalinismo. Mente, deforma, difama, acusa sem critério, procura punir e estigmatizar, valendo-se da simplificação grosseira e da pressão dos aparatos estatais. O stalinismo fazia isso em nome de uma revolução igualitarista, o que atenuava de certo modo o sacrifício que pedia. O antimarxismo atual, ao contrário, apregoa uma guinada conservadora que dê um passo atrás. Mas também ele só se viabiliza se fizer dos canais oferecidos pelo Estado uma plataforma para difundir uma cópia invertida daquilo que acusa em seus adversários. É inócuo nos territórios livres da sociedade civil, onde o debate pode fluir de forma democrática.
É o que faz o antimarxismo atacar sem trégua as diferentes instâncias da sociedade civil, da imprensa às ONGs, das escolas à indústria cultural, dos partidos políticos aos sindicatos. Ele precisa deslegitimar aquilo que foge de seu controle, reforçando ao contrário os “centros dirigentes”, a palavra dos chefes, os manuais repletos de novas verdades. Cria seus mitos e seus arautos, seus filósofos, suas narrativas, suas ideias-força, que espalha pelas redes que manipula. Constrói assim um repertório simbólico e expressivo, com o qual combate a luta cultural. Denuncia toda e qualquer operação ideológica, mas é ele próprio uma ideologia.
O ataque ao “marxismo cultural” dirige-se à mobilização do eleitorado de Bolsonaro, mas também almeja espetar na agenda pública algumas estacas que delimitem um campo ideológico. Deseja demarcar um terreno de luta, separar os bons dos maus, transferir culpas e responsabilidades. Nunca antes, no Brasil, a direita conservadora chegou tão longe.
Não se trata de um ataque inócuo. Ele tem implicações sérias. Uma delas é o risco de “macarthismo”, de discriminação e caça aos “vermelhos”. Não há uma diretriz clara, mas Onyx Lorenzoni já falou em “despetizar” o Estado. Sem freios moderadores, a cruzada poderá incentivar muita gente a denunciar comunistas em cada curva do caminho, como se fossem “inimigos da pátria”.
Afinal, o combate ao “marxismo cultural” vale-se de pessoas que pensam estar na esquerda a razão maior de suas agruras. Sem conseguir ver o conjunto da vida, estão predispostas a ser contagiadas pelo maniqueísmo simplista do “nós contra eles”.
O desdobramento disso será o empobrecimento da democracia e o prolongamento da crise do sistema político. Capturado pela insanidade por ele mesmo criada, o governo poderá cair na tentação de moldar suas políticas por critérios sempre mais ideológicos e sempre menos técnicos.
Na hipótese de essa parábola se completar, perderemos todos.
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA é professor de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp. Atuou como revisor técnico da tradução brasileira do Dicionário Gramsciano (Boitempo, 2017)


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